domingo, 23 de novembro de 2014

A máquina de fazer espanhóis

“a vida tem dessas coisas, quando não esperamos mete-nos numa grande história. bem, ou num grande poema, que também acaba por contar uma história”.

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A máquina de fazer espanhóis, de Valter Hugo Mãe, conta a história de António Silva, um português de 84 anos que perde a esposa após 48 anos de vida em comum. Logo após a morte da companheira sua vida muda drasticamente, seus filhos nao têm mais tempo para ele e, de certa forma, o obrigam a viver em um asilo.
A história de António Silva tem um quê de melancolia, nos deparamos com um homem letárgico, entristecido pela morte recente da esposa, que sente-se abandonado pelos filhos e que tem como única saída adaptar-se a seu novo e diferente modo de vida. Apesar de viver acompanhado por outras pessoas, na mesma situação que a sua, nao deixa de sentir-se solitário, passa os dias perdido em suas lembranças do passado e suas dúvidas acerca do futuro. No início da narrativa António Silva é um homem avesso a conversas, ensimesmado e entorpecido pela dor da perda.


“perdemos alguém, e temos de superar o primeiro inverno a sós, e a primeira primavera e depois o primeiro verão, e o primeiro outono. e dentro disso é preciso que superemos os nossos aniversários, tudo quanto dá direito a parabéns a você, as datas da relação, o natal, a mudança dos anos, até a época dos morangos, o magusto, as chuvas de molha tolos, o primeiro passo de um neto, o regresso de um satélite à terra, a queda de mais um avião. as notícias sobre o brasil (...) o tempo guarda cápsulas indestrutíveis, porque, por mais dias que se sucedam, sempre chegamos a um ponto onde voltamos atrás, a um início qualquer, para fazer pela primeira vez alguma coisa que vai nos dilacerar impiedosamente, porque nessa cápsula se injecta também a nitidez do seu rosto, que por vezes se perde mas ressurge sempre nessas alturas, até o timbre da sua voz, chamando o nosso nome ou, mais cruel ainda, dizendo que nos ama com um riso incrível pelo qual nos havíamos justificado em mil ocasiões no mundo”.


Porém, no decorrer da história, nosso protagonista sai de seu casulo e vai recuperando o humor e a alegria pouco a pouco. A vontade de viver, perdida a partir da morte da esposa e do abandono dos filhos, é recuperada no momento em que ele decide se relacionar com os outros moradores do asilo. António Silva inicia uma relação de amizade e companheirismo com as outras personagens: o Américo, o Doutor Bernardo e o espetacular Esteves sem metafísica.
Toda a narrativa leva o leitor a refletir sobre a sociedade portuguesa, sobre a política na época da Ditadura de Salazar – que marcou profundamente a vida das personagens -, sobre o amor na terceira idade, sobre a solidão decorrente da senilidade, sobre o valor da amizade e do companheirismo e, sobretudo, sobre a dor da perda. O autor faz um relato brilhante sobre a velhice e sobre a morte que, nessa altura da vida, é inexorável.


“um problema com o ser-se velho é o de julgarem que ainda devemos aprender coisas quando, na verdade, estamos a desaprendê-las, e faz todo o sentido que assim seja para que nos afundemos inconscientemente na iminência do desaparecimento. a inconsciência apaga as dores, claro, e apaga as alegrias, mas já não são muitas as alegrias e no resultado da conta é bem visto que a cabeça dos velhos se destitua da razão para que, tão de frente à morte, não entremos em pânico. a repreensão contínua passa por essa esperança imbecil de que amanhã estejamos mais espertos quando, pelas leis mais definidoras da vida, devemos só perder capacidades. a esperança que se deposita na criança tem de ser inversa à que se nos dirige”.


Além de escrever sobre a derradeira fase da vida de uma forma admiravelmente bela, Valter Hugo Mãe me conquistou mais ainda por ter dado vida ao Esteves sem metafísica. Sim, ele mesmo, do famoso poema Tabacaria, de Álvaro de Campos. Adorei sua criatividade e coragem para tomar posse de uma personagem de Fernando Pessoa, isso acabou me fazendo lembrar de Saramago que se apropriou de um dos heterônimos de Pessoa para escrever o sensacional “O ano da morte de Ricardo Reis”.
Hugo Mãe tem uma forma bastante peculiar de escrever, ele não costuma utilizar letras maiúsculas, o que dá um charme todo especial à escrita. Aliás, é justamente isso que tanto me agrada nele, pois além da capacidade de emocionar o leitor com a sensibilidade de suas personagens, sua forma tão sua, tão própria de escrever, conquista quem o lê.
Adorei A máquina de fazer espanhóis, me encantei com a forma como é contada a história e indico para todos aqueles que, como eu, gostam de livros delicados e emotivos.

Sobre o autor:
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Valter Hugo Mãe é um escritor português, nascido em Angola, em 1971. É ainda jovem, mas com uma carreira literária de causar inveja. Vencedor de vários prêmios literários, como o conhecido Prêmio José Saramago, e com um talento fora do comum para criar personagens fortes e ao mesmo tempo emotivos, Hugo Mãe conquistou respeito, admiração e um lugar respeitável na literatura portuguesa contemporânea.

Um vídeo do poema Tabacaria:

“Não sou nada
Nunca serei nada
Não posso querer ser nada
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”.

sábado, 15 de novembro de 2014

Manoel por Manoel

“Ao nascer eu não estava acordado, de forma que não vi a hora. Isso faz tempo. Foi na beira de um rio. Depois eu já morri 14 vezes. Só falta a última.”


Manoel de Barros 
"Eu tenho um ermo enorme dentro do olho. Por motivo do ermo não fui um menino peralta. Agora tenho saudade do que não fui. Acho que o que faço agora é o que não pude fazer na infância. Faço outro tipo de peraltagem. Quando eu era criança eu deveria pular muro do vizinho pra catar goiabas. Mas não havia vizinho. Em vez de peraltagem eu fazia solidão. Brincava de fingir que pedra era lagarto. Que lata era  navio. Que sabugo era um serzinho mal resolvido e igual a um filhote de gafanhoto.
Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem comparamentos. Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação.
Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um passáro e sua árvore. Então eu trago de minhas raízes crianceiras a visão comugante e oblíqua das coisas. Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina. É um paradoxo que ajuda a poesia e que eu falo sem pudor. Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter sido criança em algum lugar perdido onde havia transfusão da natureza e comunhão com ela. Era o menino e os bichinhos. Era o menino e o sol. Era o menino e as árvores."
(trecho retirado de 'Memórias Inventadas - A Segunda Infância')





Grandes mestres da literatura brasileira se foram neste ano: João Ubaldo Ribeiro, Rubem Alves, Ariano Suassuna e, agora,  Manoel de Barros. Todos deixarão saudades.
Manoel de Barros, porém, era o meu preferido; ele não deixará saudades apenas, deixará o Brasil mais pobre de poesia.
Sentirei sempre falta de suas palavras que encantam.
Ainda bem que ele deixou um legado enorme, pois quando a saudade bater com força, poderemos ler e reler sua obra.






Com tanto escritor de qualidade partindo a biblioteca do paraíso ficará garantida!
 
Descanse em paz, poeta!

domingo, 9 de novembro de 2014

Vamos compartilhar livros, pessoal?

"(...) era uma pena a falta de leitura não se converter numa doença, algo como um mal que pusesse os preguiçosos a morrer. Imaginava que um não leitor ia ao médico e o médico o observava e dizia: você tem o colesterol a matá-lo, se continuar assim não se salva. E o médico perguntava: tem abusado dos fritos, dos ovos, você tem lido o suficiente? O paciente respondia: não, senhor doutor, há quase um ano que não leio um livro, não gosto muito e dá-me preguiça. Então, o médico acrescentava: ah, fique pois sabendo que você ou lê urgentemente um bom romance, ou então vemos-nos no seu funeral dentro de poucas semanas. O caixão fechava-se como um livro." 

Eu gosto muito do trecho acima, retirado do livro 'O filho de mil homens', do escritor português Valter Hugo Mãe. Gosto porque acho engraçado, mas sobretudo porque remete à importância da leitura... E toda vez que eu penso na importância de ler e compartilhar livros, lembro do BookCrossing Blogueiroum projeto superbacana organizado pelo blog da Luz de Luma, que tem como principal objetivo a propagação da leitura. A 9ª edição do BookCrossing acontece de 8 a 16 de novembro.

Fiquei por dias pensando sobre o que escreveria, como conseguiria passar toda a admiração e entusiasmo que sinto pelo projeto, mas acabei mesmo sem nenhuma ideia inovadora. Portanto, a única coisa que posso dizer é que a leitura é uma das coisas mais maravilhosas da vida; a leitura nos leva para outros mundos, nos faz pensar e refletir sobre diversos assuntos, nos faz viajar para lugares desconhecidos e por vezes encantadores, faz aumentar nosso conhecimento e também nosso vocabulário, enfim, há inúmeras razões pelas quais a leitura não deve deixar de fazer parte do nosso dia a dia. Sabendo disso, o ato de compartilhar livros se torna ainda mais satisfatório, porque além de doarmos os livros, com eles enviamos também todas as coisas boas, bonitas e interessantes que uma boa história é capaz de oferecer a um leitor.
Bom seria se neste mundo moderno, atualmente tão controlado pela tecnologia, em vez de celulares e jogos eletrônicos, as pessoas portassem mais livros... Seria uma delícia, né não?!
O meu desejo mais profundo é que essas pessoas realmente possam desfrutar dos livros que libertamos, que leiam e que voltem a libertá-los por aí, e que façam disso um hábito para toda a vida.


Decidi doar quatro livros. Alguns deles estão em português, por isso não posso doá-los aqui onde moro. Como da outra vez, pretendo enviá-los pelo correio para aquelas pessoas que estiverem interessadas. Basta apenas deixar um recadinho dizendo qual livro deseja receber. O envio será por ordem de chegada, quem pedir primeiro, leva.
Espero que vocês também se animem e decidam libertar aqueles livros que estão parados na estante.
Sim, pessoal, deixem os livros circular livremente e encantar outras pessoas mundo afora. :D

Livros que serão libertados:



O Guardião de Memórias, de Kim Edwards


Nada dura pra sempre, de Sidney Sheldon


Things Fall Apart, do escritor nigeriano Chinua
Este, por ser em inglês, será libertado aqui mesmo em Hong Kong


Os Descendentes, de Kaui Hart Hemmings






Participem! :)

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Do fundo do baú: Colonia del Sacramento!

Remexendo e organizando minhas fotos antigas, encontrei algumas que foram feitas em Colonia del Sacramento, no Uruguai. Já faz alguns anos que estive por lá, mas parece que foi ontem, porque as lembranças ainda estão fresquinhas na cachola.
Não sei se já comentei aqui no blogue, mas antes de vir morar em Hong Kong eu morei por quatro anos em Buenos Aires, na Argentina.
Apesar de ter mencionado Baires, não é sobre a capital portenha que eu quero falar, mas sobre Colonia del Sacramento, uma cidadezinha extremamente charmosa que fica no Uruguai, às margens do Rio da Prata, a apenas um pulo de Buenos Aires.



O farol

Praia afastada da cidade


Geralmente, as pessoas que moram na capital portenha e decidem visitar Colonia del Sacramento vão de manhã e voltam à noite, devido a proximidade é muito fácil e cômodo fazer a viagem; uma horinha só de balsa e chega-se do lado de lá. Porém, eu decidi ir com calma e ficar  três dias inteirinhos. Teria ficado muito mais se tivesse tido tempo, pois a cidadezinha é realmente uma graça e vale cada hora que se passa passeando e conhecendo.
Mesmo sendo uma cidade pequena não faltam cantinhos históricos e casarões charmosos e bem conservados pra ver. Há várias atividades legais que agradam o turista, desde visitar os museus da cidade, conhecer os restaurantes, observar o pôr do sol, como fazer pequenos passeios a pé; também há a possibilidade de alugar um carrinho de golfe e sair um pouco da cidade para conhecer as áreas mais afastadas (algo que eu fiz, achei divertido e recomendo).



Em uma esquina qualquer...




Calle de los Suspiros e o Rio de la Plata ao fundo

Colonia del Sacramento é a cidade mais antiga do Uruguai, foi fundada em 168o pelo português Manuel Lobo e é a única cidade do Uruguai com características bem lusitanas, bem diferente das outras cidades dessa região. Gostei imensamente da forma como os uruguaios recebem os visitantes, eles são simpáticos e fazem com que o turista se sinta em casa.
Foi justamente em Colonia del Sacramento que comi o doce de leite mais gostoso da vida (
lo siento, hermanos argentinos, pero es verdad!) e vi o pôr do sol mais lindo do mundo (não estou exagerando, gente, é sério!).


Uma janela charmosa

Esperando o pôr do sol...

Por do Sol mas lindo do mundo

Pôr do Sol mais lindo do mundo II


O centro de Colonia del Sacramento é simplesmente encantador, seus cantinhos históricos e seus casarões coloniais tão bem conservados fizeram com que em 1995 fosse declarado Patrimônio Histórico da Humanidade. Apesar de morar tão longe atualmente, ainda penso um dia fazer um passeio por lá outra vez. Colonia é lindinha demais, por isso merece mesmo uma visita demorada. :)